Policiais penais e diretores da penitenciária Dr. Osvaldo Florentino Leite Ferreira, mais conhecida como Ferrugem, em Sinop, a 503 km de Cuiabá, são apontados por envolvimento em suposta tentativa de atentado a um juiz durante inspeção na penitenciária para que não se descobrisse a série de violações de direitos dos reeducandos que ocorrem dentro da unidade.
É o que revela um relatório do Grupo de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário e Socioeducativao (GMF) do Tribunal de Justiça de Mato Grosso (TJ-MT). Algemas soltas em reeducando apontado como chefe do Comando Vermelho e ausência de policiais penais perto da sala de audiência são indícios, segundo denúncia, para que ele se rebelasse contra o juiz e o promotor de Justiça. Porém, o reeducando confidenciou, durante depoimento, a suposta conspiração após balançar as mãos diante do magistrado e as algemas caíram no chão.
A Secretaria Estadual de Justiça (Sejus) informou, em nota, que recebeu o relatório na sexta-feira (12), e que instaurou, ainda em novembro, uma apuração conduzida pela Corregedoria-Geral para verificar a situação na penitenciária. A Sejus disse que não coaduna com nenhum tipo de abuso ou prática criminosa e caso seja confirmado, serão adotadas as medidas cabíveis para a devida responsabilização.
A secretaria destacou ainda que, neste ano, não recebeu nenhuma denúncia de tortura e citou um episódio de princípio de motim por parte dos reeducandos que teriam tentado destruir as celas. O diretor da unidade negou qualquer envolvimento, em nota, e disse que "as ações realizadas na unidade têm como objetivo exclusivo a manutenção da ordem e da segurança após início de motim de depredação de patrimônio público".
O Sindicato dos Policiais Penais de Mato Grosso (Sindsppen) disse, em posicionamento público, que é lamentável que discursos de integrantes do crime organizado enquanto o trabalho árduo dos agentes é colocado em suspeita. "No entanto, o que se viu foi um relato unilateral. Presos de alas voltadas ao trabalho e grupos religiosos, conhecidos pelo bom comportamento e por não aderirem às diretrizes de facções, não tiveram o mesmo espaço de fala.
É alarmante que nenhum policial penal tenha sido ouvido para apresentar o contraponto ou esclarecer as circunstâncias dos fatos narrados, sendo ele representante do estado dentro da unidade", diz trecho da nota. Em relação às violações de direitos, como agressões nas celas, o Sindsppen explicou que, na realidade técnica e jurídica, muitas vezes o configura uso progressivo da força para conter motins, desobediências e movimentos ilícitos. "O histórico de tentativas de desestabilização do sistema por parte de faccionados é conhecido e recorrente", disse.
O Sindsppen ainda defendeu o contraditório e destacou que uma equipe própria do sindicato também acompanhou os trabalhos e aguarda um relatório técnico.
A denúncia de suposto atentado surgiu durante uma audiência de inspeção no dia 30 de outubro para ouvir os reeducandos sobre a situação no presídio.
O reeducando que revelou a conspiração disse que o plano, segundo depoimento, teria sido encomendado pelo diretor do presídio e teve a participação do subdiretor, considerado seu braço direito. O objetivo da ação seria para "deslegitimar os relatos de violência prestados por outros presos durante a inspeção". Para que esse plano fosse executado, ele teria as algemas soltas, tanto da mão quanto do pé, para se rebelar contra o juiz.
Mas tudo isso mediante a promessa de receber regalias dentro do presídio, como a transferência para o Raio Evangélico, onde os reeducandos têm certa autonomia, e a garantia de uma vaga em trabalho externo, que é raro na unidade, conforme o relatório. Neste momento, o juiz solicitou a presença dos policiais penais na sala, que são responsáveis por conduzir os custodiados. Porém, não havia nenhum policial penal próximo da sala, o que evidenciou a quebra de protocolo de segurança que até então estava sendo rigorosamente cumprido pelos agentes.
"Os indícios são de que os policiais saíram deliberadamente para deixar que o reeducando atentasse contra as autoridades. Inclusive o reeducando relatou que eles o deixariam entrar com um estilete (“chucho”) na sala de audiência, só que ele preferiu não fazer", diz trecho do relatório. O magistrado, bastante incomodado com a situação e considerando que o clima estava realmente tenso, optou por retornar a Cuiabá com a equipe ainda à noite, logo após o término dos depoimentos. Por volta de 3h daquela madrugada, na MT-10, em Rosário Oeste, o carro oficial da Justiça foi surpreendido por uma caminhonete de vidro fumê, que passou à frente deles e freou bruscamente, tentando interceptar o carro da Justiça ao parar no meio da rodovia.
Porém, o motorista do carro da Justiça conseguiu parar a tempo e apagou todas as luzes, encostando o carro perto de uma área de mata, e permaneceu parado no escuro, escondido. A caminhonete saiu do meio da pista e permaneceu parada num ponto mais longe cerca de 20 a 30 minutos, e depois deixou o local em alta velocidade.
Por alguns quilômetros, o carro da Justiça andou com os faróis apagados para despistar a caminhonete suspeita. O magistrado disse que, em 26 anos de carreira, foi a primeira vez que passou por situação parecida. "Ainda que, neste momento, não seja possível afirmar com certeza a participação direta de agentes estatais nos fatos ocorridos fora do ambiente prisional, a sucessão de episódios atípicos, em curto espaço de tempo, associada às quebras de protocolo de segurança dentro da unidade, afasta a ideia de mero acaso. Coincidência ou não, o registro que se faz é o de que o magistrado e os servidores efetivamente se sentiram intimidados e sob risco", apontou o relatório.
Violações no presídio A inspeção revelou, no documento, uma prática sistemática e institucionalizada de tortura e de tratamento desumano, cruel e degradante, associada à consolidação de um poder paralelo voltado ao exercício de “justiça própria” dentro da unidade. Os reeducandos relataram vários episódios de humilhações, uso abusivo de spray de pimenta, tiros de borracha e até mordida de cães como medida disciplinar.
A equipe de inspeção verificou visualmente que quase todos os reeducandos ouvidos no Fórum tinham cicatrizes (antigas) e lesões ou feridas (recentes) de balas de borracha, segundo o relatório. "A análise dos depoimentos dos presos, aliada ao material videográfico das câmeras e apreensão das munições, demonstra que a utilização dos disparos ocorreu sem respaldo em justificativa plausível, ou em resposta a situações de natureza irrisória e manifestamente desproporcionais. Este padrão de conduta por parte dos policiais penais aponta para o uso dos tiros como um meio de aplicação de castigo pessoal ou como medida disciplinar de caráter preventivo", diz trecho do documento.
O relatório apontou ainda que os policiais penalizavam os detentos confinados ao lançarem o spray de pimenta diretamente para o interior das celas superlotadas através da “boqueta”. "Essa conduta resultava na exposição forçada e em massa dos presos ao agente químico, sem qualquer possibilidade de fuga ou mitigação dos efeitos", disse. Mordida de cães O emprego de cães de ataque revelou-se um vetor recorrente de lesões corporais e violência institucional. Vários foram os detentos que relataram uso indevido de cachorros.
O reeducando apresentou à equipe de inspeção uma lesão profunda e nítida na região glútea, com marcas características de mordedura, evidenciando que o animal foi utilizado como arma de coerção física durante o procedimento. As imagens das câmeras de segurança corroboram o uso ostensivo e intimidatório de cães, registrando, inclusive, momentos em que os animais são instigados a avançar contra os detentos.
Uma das imagens mostra o cachorro já com a boca aberta para morder o preso. Os presos relataram que por vezes os policiais penais inserem “um cachorro no bebedouro de água”.
Imagens das câmeras de segurança registraram um dos policiais levando o cão para dentro do reservatório de água, de acordo com a inspeção. Poucas horas depois, segundo o relatório, os detentos aparecem bebendo a água deste mesmo reservatório em que o cachorro havia entrado antes, obrigando-os a consumirem água imprópria.


