Em 1991, o ator Ney Latorraca (1944-2024) vivia dois momentos simultâneos de extraordinário sucesso, algo raríssimo na carreira de qualquer artista. Desde 1986, ele lotava qualquer teatro por onde passava com a comédia O Mistério de Irma Vap, uma contracena antológica com Marco Nanini que seguiria quebrando recordes por mais seis anos. Na televisão, era a vez do Conde Vlad, o líder dos vampiros da novela Vamp, exibida pela Rede Globo no horário das sete, que lhe rendeu um fã-clube de todas as idades. E, pouco antes de entrar na novela, Latorraca dividia seu tempo entre Irma Vap e o humorístico TV Pirata, outro clássico, lançado em 1988, em que imortalizou personagens, como o velho Barbosa. Não era pouca coisa não...
Antônio Ney Latorraca, garoto pobre de Santos, filho do crooner Alfredo e da corista Nena, não resistiu e caiu no deslumbramento diante de tanto reconhecimento sucesso e dinheiro na conta. Ele próprio admitia com humor para disfarçar certa melancolia. “Com Irma Vap fiquei rico, comprei minha cobertura, nunca mais deixei de viajar de primeira classe e dei para minha mãe tudo o que ela merecia”, repetia nas entrevistas. “Vamp me proporcionou uma popularidade que jamais imaginei e fiquei bobo mesmo, comecei a me sentir o máximo.”
Por isso, quem conheceu o trabalho de Latorraca apenas nas últimas três décadas talvez não tenha a noção do tamanho do seu talento e da versatilidade comprovada em 60 anos de carreira. A estreia nos palcos foi com Reportagem de um Tempo Mau, do conterrâneo santista Plínio Marcos, em 1964, imediatamente proibida pela censura e, nos dois anos seguintes, atuou em A Crônica e O Cristo Nu, junto ao grupo da Faculdade de Filosofia de Santos.
Em 1974, Latorraca chegou à Rede Globo na novela Escalada convicto de seu valor, mas certo de que os ganhos financeiros poderiam aumentar consideravelmente. Nos intervalos das gravações, ele dançava a valsa em bailes de debutantes e comprou seu primeiro imóvel, na Rua Marquês de Itu, em São Paulo. Como o rebelde Mederiquis, da novela Estúpido Cupido (1976), de jaqueta de couro e pilotando uma lambreta, sentiu o impacto da audiência e, com o ego massageado, se encantou pelas novelas.
Ney Latorraca também fez cinema. Foi o padre jesuíta no longa Anchieta, José do Brasil (1976), teve momentos de destaque em O Beijo no Asfalto (1981), do cineasta Bruno Barreto, e em Ele, O Boto (1987), de Walter Lima Jr., e luminosas parcerias com Ruy Guerra em Ópera do Malandro (1985) e A Bela Palomera (1988).
Mas foi mesmo no teatro que Latorraca soube ser muitos e deu a certeza de que seu potencial ultrapassa os múltiplos personagens de O Mistério de Irma Vap e da TV Pirata ou Vlad da novela Vamp. Mesmo consagrado pela TV, ele continuou fiel aos tablados e, em 1979, saltou do musical Lola Moreno para o drama barra-pesada Afinal, Uma Mulher de Negócios, ao lado de Renata Sorrah.
Ultimamente, completamente recluso e mal saía de sua cobertura, no Rio de Janeiro. No máximo, disse ele, dava caminhadas pela Lagoa Rodrigo de Freitas e voltava rapidinho para casa. Fugia dos convites para badalações, evitava conversas de trabalho e não conseguia controlar um certo pânico com os holofotes que tanto procurou no passado. Às vezes, faltava a compromissos assumidos sem justificativas, como na última entrega do Prêmio APTR deste ano, em julho.
Desde o dia 20, o ator estava internado na Clínica São Vicente, no Rio, devido ao agravamento de um câncer de próstata descoberto em 2019 e imediatamente operado. A doença voltou a se manifestar em agosto, logo depois de seus 80 anos, com metástase.
Discretamente, Ney Latorraca foi saindo de cena, sem despedidas e estardalhaços. Vaidoso, como era, talvez desejasse que o público guardasse para sempre a imagem dos seus grandes papeis no teatro, no cinema e na televisão. Estas imagens vão ficar.