Sancionada em julho de 2023, a Lei Vini Júnior (Lei nº 10.053/2023) surgiu como uma resposta institucional aos episódios de racismo enfrentados pelo jogador brasileiro Vinícius Júnior durante partidas na Espanha. O objetivo é combater e prevenir manifestações racistas em estádios e arenas esportivas.
O texto da lei estabelece um protocolo com medidas práticas a serem adotadas durante eventos esportivos, a fim de coibir atos de discriminação racial. Entre os principais pontos, destaca-se a obrigação de identificar torcedores que pratiquem atos racistas, com o apoio de recursos de monitoramento e segurança. Outra medida prevista envolve a sonorização nos estádios: se houver manifestações racistas por parte das torcidas, a locução oficial deve interromper a programação para alertar e solicitar a suspensão imediata das ações. Persistindo o comportamento, o protocolo orienta a paralisação da partida para avaliação e aplicação de punições cabíveis.
A proposta é considerada um instrumento não apenas de punição, mas também de conscientização. A intenção é usar o esporte, enquanto fenômeno cultural de massas, como ferramenta para educar e transformar comportamentos sociais.
O autor da lei é o professor Josemar, deputado estadual pelo PSOL-RJ. Um dos maiores desafios na elaboração e aprovação do projeto foi consolidar a pauta racial como prioridade dentro do Legislativo. A aprovação no Rio de Janeiro abriu caminho para iniciativas semelhantes em outros estados brasileiros. Atualmente, projetos inspirados na Lei Vini Júnior tramitam em diversas Assembleias Legislativas pelo país.
Na prática, a implementação da lei tem exigido articulação com órgãos responsáveis pela segurança e administração do esporte. Já foram realizadas reuniões com batalhões especializados de policiamento em estádios, além de palestras com policiais atuantes nesse tipo de evento. Também houve diálogo com entidades como a Superintendência de Desportos do Estado do Rio de Janeiro (Suderj), a Confederação Brasileira de Futebol (CBF) e federações de outras modalidades, como o vôlei, com foco na aplicação da lei em arenas diversas.
Entre as ações previstas no protocolo está também a presença de mensagens educativas nos estádios. Frases como "Racismo é crime" passaram a compor o ambiente das arenas, reforçando o caráter pedagógico da norma.
Segundo Patricia Dias da Silva, doutoranda e mestre em Psicossociologia de Comunidades e Ecologia Social pela EICOS/UFRJ e coordenadora do preparatório para pessoas negras e periféricas do Projeto Consciências, do Sesc-Rio, o discurso da superação e da meritocracia no esporte contribui para ocultar o racismo estrutural, ao desconsiderar as desigualdades históricas e sociais que impactam os atletas negros.
- O discurso da superação e da meritocracia no esporte oculta o racismo estrutural ao ignorar as desigualdades históricas e sociais que afetam atletas negros. Ao afirmar que apenas o esforço pessoal é suficiente para o sucesso, desconsidera-se que muitos enfrentam barreiras significativas, como falta de acesso à infraestrutura, apoio financeiro e discriminação racial direta. Essa lógica perpetua a ideia de que o fracasso é resultado da falta de empenho individual, em vez de reconhecer os obstáculos estruturais que limitam o progresso dos atletas negros - comenta Patricia.
Ações de Federações no combate ao racismo
Apesar dos avanços, há reconhecimento de que clubes e federações ainda não estão plenamente preparados para cumprir o protocolo em sua totalidade. O processo de implementação exige debates contínuos, capacitação de profissionais e integração entre as instituições envolvidas.
- Clubes, federações e profissionais de saúde mental têm a responsabilidade de promover a diversidade e a inclusão no ambiente esportivo. Isso se justifica pelo impacto transgeracional do racismo na população negra brasileira, que historicamente tem sido privada de seus direitos humanos. Para enfrentar essa realidade, é fundamental adotar a educação antirracista e implementar políticas específicas contra o racismo, garantindo suporte psicológico aos atletas. O racismo é uma questão estrutural, institucional e sistêmica, e seu enfrentamento requer ações coordenadas. Essas políticas e práticas educativas precisam ter autonomia dentro das instituições esportivas para atuar de maneira proativa, identificando e denunciando a discriminação racial, além de oferecer suporte psicológico adequado aos atletas, construindo um ambiente esportivo antirracista, acolhedor e seguro para todos - aponta Patricia.
A proposta de federalização da Lei Vini Júnior já chegou ao Congresso Nacional, com projetos apresentados por parlamentares alinhados ao objetivo de transformar a legislação estadual em uma norma de alcance nacional. A nacionalização permitiria ampliar o alcance do protocolo, fortalecer sua autoridade e garantir sua aplicação em competições internacionais, como a Libertadores.
Ainda não há um número fechado de estados que aprovaram leis semelhantes, uma vez que os projetos tramitam em ritmos diferentes nas Assembleias Legislativas. No entanto, segundo o autor da lei original, a maioria dos estados já apresentou propostas inspiradas na norma fluminense, o que demonstra o impacto nacional da iniciativa.
A memória na luta contra o racismo e políticas públicas
A presença e a valorização de atletas negros no esporte vão além das vitórias em campo ou nas quadras. Elas representam um ato de resistência diante de um cenário marcado por apagamentos históricos e desigualdades estruturais. Reconhecer essas trajetórias é essencial para fortalecer a luta antirracista, promovendo referências positivas e incentivando o protagonismo de novas gerações.
- A memória e a valorização de atletas negros são fundamentais para a luta antirracista, pois faz com que estes atores sociais sejam protagonistas e gestores da sua própria história de luta e símbolo de resistência, uma vez que ainda têm sido apagados e ignorados. Ao reconhecer as conquistas desses atletas e contar suas trajetórias, cria-se uma base para inspirar novas gerações e conscientizar o público sobre o racismo e as contribuições históricas dos negros no esporte. Essa valorização dos atletas negros também serve como uma ferramenta de combate ao racismo, ao evidenciar que, com políticas que apoiam a diversidade e inclusão, mesmo com as barreiras impostas pelo racismo estrutural, podem criar grandes talentos no esporte - detalha Patricia.
Além da visibilidade, é preciso que as ações antirracistas se concretizem em políticas públicas eficazes e duradouras. Para Patricia, combater o racismo no esporte não se resume à punição de atos discriminatórios, mas exige um compromisso contínuo com a promoção da diversidade e da inclusão.
- Para que as políticas públicas de combate ao racismo no esporte sejam mais eficazes, é necessário ir além da punição. É fundamental promover uma cultura de diversidade e inclusão, o que inclui educação antirracista nas escolas e clubes esportivos, formação contínua para treinadores e dirigentes, campanhas permanentes de conscientização e suporte psicológico para atletas que sofrem discriminação. É fundamental garantir a representatividade negra nos espaços de decisão esportiva, assegurando que suas vozes e dores sejam ouvidas - concluiu.
Com quase dois anos desde sua aprovação, a Lei Vini Júnior permanece como um marco legal importante no enfrentamento ao racismo no esporte. No entanto, por si só, ela ainda não impede que casos de discriminação ocorram nos gramados brasileiros.
Recentemente, o Ministério Público do Paraná (MP-PR) denunciou o meia Miguelito, do América-MG, por injúria racial contra o atacante Allano, do Operário. O caso aconteceu durante uma partida válida pela sexta rodada da Série B do Campeonato Brasileiro. As decisões do árbitro na partida seguiram recomendações da CBF (Confederação Brasileira de Futebol), baseadas na chamada 'Lei Vini Jr.'.
Mesmo com casos recentes, o desafio continua sendo garantir a plena aplicação da lei, promover a educação dos profissionais do esporte e ampliar os protocolos de combate a todas as formas de discriminação, dentro e fora dos gramados. A luta continua.